sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Todo ser que respira... (4)

Aleluia! Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no firmamento, obra do seu poder.
Louvai-o pelos seus poderosos feitos; louvai-o consoante a sua muita grandeza.
Louvai-o ao som da trombeta; louvai-o com saltério e com harpa.
Louvai-o com adufes e danças; louvai-o com instrumentos de cordas e com flautas.
Louvai-o com címbalos sonoros; louvai-o com címbalos retumbantes.
Todo ser que respira louve ao Senhor. Aleluia.

Salmo 150



Como Deus deve ser louvado?


Já sabemos a quem louvar, onde louvar e por que louvar. Mas, como devemos fazer isso? A resposta do salmista é muito criativa. Ele sugere que tomemos como paradigma a estrutura de uma orquestra.
Uma orquestra convencional, guardadas as devidas distâncias e diferenças entre as modernas e as dos tempos bíblicos, é constituída essencialmente por instrumentos de (1) sopro (madeiras e metais), (2) cordas e de (3) percussão.
Ora, todas essas classes de instrumentos são mencionadas pelo salmista:

  1. Sopro: trombetas (metais) e flautas (madeira);
  2. Cordas: harpas, saltério e instrumentos de cordas;
  3. Percussão: adufes (tipo de pandeiro) e címbalos (tipos de pratos, percutidos un contra o outro).
Nota-se que a ideia aqui apresentada não é, evidentemente, que cada instrumento se governe autonomamente e que todos se manifestem em um cacofonia (som feio ou desagradável) insana e competitiva, mas em perfeita harmonia, em mútua cooperação - como o apóstolo Paulo recomenda aos Romanos (15.6): "para que concordemente [num só coração] e a uma voz glorifiqueis a Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo."
Disso infere-se que a variedade e a multiplicidade de dons e talentos podem e devem estar a serviço do culto e da adoração. As diferenças somam, quando colocadas a serviço da harmonia conduzida pelo grande Mestre e Maestro do universo.
Chama a atenção também a referência sem paralelo, que o salmista faz às "danças", no versículo 4. O autor redige uma sequência de paralelismos deixando a dança como elemento central e único:


A - Trombetas (sopro)
B - Saltérios (cordas) - neste caso, tipo de instrumento de cordas dedilháveis, semelhante à cítara.
B - Harpa (cordas)
A - Flautas (sopro)
C - Adufes (percussão) - tipo de pandeiro, feito de madeira leve com membranas retesadas de ambos  os lados.
D - Danças
B - Instrumentos de cordas (cordas)
A - Flautas (sopro)
C - Címbalos sonoros (percussão) - instrumento de percussão constituídos de discos de metal, pendentes na posição horizontal, que se percutem um sobre o outros; pratos.
C - Címbalos retumbantes (percussão) - semelhante aos sonoros, mas maiores. Os sonoros se utilizam nos dedos, como castanholas, os retumbantes com as mãos.


Essa estruturação literária, com base em paralelismos, é frequente na cultura semita e recebe o nome de Quiasmo. A sutileza do sistema está justamente naquele elemento que fica desparceirado, sozinho. A rigor, é justamente esse elemento solitário que constitui no central ou mais relevante da estrutura narrativa.
Se este for o caso deste salmo, então, deve os rever o nosso jeito de interpretá-lo. Para a nossa cultura (ocidental), a maneira como a "dança" é mencionada não parecia indicar ou sugerir qualquer destaque. Mas, se levarmos em conta a estrutura semita, então todo o peso recai justamente sobre a "dança" (mahol, em hebraico).
Curioso é que, ao longo da história, a Igreja tenha sistematicamente combatido esse tipo de expressão artística, por associá-la com o que se passava nas festas pagãs. No entanto, é só procedermos a uma análise honesta que concluiremos, com facilidade, que o problema não está na dança em si, mas com o sentido e no propósito com os quais se dançam.
Dançar, segundo os dicionários, é movimentar o corpo com intenção artística, obedecendo a um determinado ritmo musical ou como forma de expressão subjetiva ou dramática. Portanto, a arte, que é o que nós temos de mais próximo de Deus na cultura humana, oferece múltiplas possibilidades para expressarmos objetivamente os nossos sentidos, sensações e intenções subjetivas.
Naturalmente, se a "intenção" é necessária para que a dança seja arte, não faz sentido uma movimentação aleatória e vazia de significado. A dança deve ser, portanto, inteligente e inteligível.
É, igualmente, expressão coletiva. Essa dança da qual fala o Salmo 150 reporta-se às evoluções coreográficas realizadas pelo povo em suas festas e solenidades, e que eram realizadas, portanto, coletivamente e de maneira sincronizada, de modo que os corpos humanos chegavam a formar "desenhos em movimento".
Mas o que há de mais significativo nesta menção à dança é o fato de que o salmista traz o corpo para o culto. Sim, aquilo que durante séculos foi negado, na maioria ds contextos religiosos cristãos, é de vital importância para a espiritualidade bíblica. No entanto, essa centralidade do corpo não deveria causar estranheza nem provocar rejeição, uma vez que a principal doutrina cristã é justamente a da encarnação do Verbo: Deus se fez corpo em Cristo. Desde então, a negação do corpo deveria ser encarada como heresia, como o faz o autor das epístolas de João: "Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus" (1 Jo 4.2). Os que pensam diferentemente são anticristos, contra Cristo; "e todo que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo" (1 Jo 4.3).
A dança está no centro hierárquico do "como cultuar" porque mesmo que não tenhamos uma orquestra, nem órgão, nem violão nem mesmo uma flauta... e mesmo que a própria voz nos falte, ainda assim temos os nossos corpos para adorar a Deus. É com o corpo todo que cumprimos o grande mandamento: "Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e [não nos esqueçamos do outro lado da moeda]: Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lc 10.27).


Extraído do livro "Todo ser que respira... a missão da música na igreja", de autoria de Luiz Carlos Ramos. Editeo/Igreja Metodista

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